Seca e extinção da biodiversidade no Pantanal: entenda polêmica em construção de hidrovia
O ressurgimento do projeto de navegação conhecido como Hidrovia Paraguai-Paraná ameaça a integridade de todo o Pantanal. Para entender os reais impactos dessa construção, o biólogo e diretor da ONG Ecoa, Alcides Faria, detalha as dinâmicas do polêmico projeto que pode decretar o fim da maior planície alagável do mundo.
Um estudo assinado por 42 cientistas brasileiros e estrangeiros alerta que o avanço da hidrovia pode acarretar danos irreparáveis ao Pantanal. O projeto prevê o aprofundamento de 700 km do canal natural do Rio Paraguai em seu trecho superior, no entanto, isso resultaria em níveis mais baixos de água e na redução do ecossistema da planície de inundação.
Alcides, que ao longo de sua carreira se debruçou em diversos estudos sobre a hidrovia, ressalta que os impactos da construção devem considerar, principalmente, três fatores: a dinâmica das águas na BAP (Bacia do Alto Paraguai); o que é o projeto da Hidrovia e a questão climática e os eventos extremos observados no país nos últimos anos.
Dinâmica das águas
A quantidade de água na região do Pantanal é determinada pelas chuvas e secas observadas a cada ano. Segundo Alcides, entender essa dinâmica é fundamental para avaliar os impactos ambientais do projeto da Hidrovia, uma vez que as obras podem gerar uma seca permanente na região.
“O Pantanal é uma imensa planície com baixa declividade tanto no sentido Leste-Oeste quanto no Norte-Sul. Essa planície recebe as águas da parte alta da bacia do rio Paraguai, a qual é drenada lentamente para o Sul, ao longo do ano, pelo rio Paraguai localizado na maior parte de seu trajeto no extremo Oeste do Pantanal”, explica o biólogo.
O Rio Paraguai que flui através do Pantanal é a última grande paisagem fluvial da América do Sul que ainda possui uma estrutura quase natural. Por isso, esse aprofundamento afetaria regiões de alto valor ecológico, incluindo parques, terras indígenas e outras áreas protegidas, reconhecidas como patrimônios mundiais e reservas da biosfera pelas Nações Unidas.
Navegação mesmo em período de secas
Criado na década de 80, o megaprojeto da Hidrovia Paraguai-Paraná, surgiu como um projeto de melhoria da navegabilidade e da infraestrutura da região. Em suas origens, a proposta previa grandes intervenções no rio Paraguai e Paraná para possibilitar a construção de uma via industrial com tráfego 24 horas por dia nos 365 dias do ano.
O complexo hidroviário compreende a cidade de Cáceres, no Mato Grosso, até Nueva Palmira, no Uruguai, totalizando cerca de 3,4 mil quilômetros. A via fluvial percorre cinco países: Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai, passando pelas cidades de Corumbá e Assunção.
“No Pantanal trataria de garantir água no leito do rio para a navegação contínua, mesmo nos períodos mais secos, fazendo dragagens de aprofundamento, água que viria de outras regiões da planície, secando-a”, ressalta o especialista.
A ideia que nasceu com a promessa de trazer ‘progresso’ para a região, previa o deslocamento de barcaças lotadas de itens como soja, açúcar, milho, cimento, ferro e manganês até portos oceânicos na boca do Rio da Prata e, dali, ao mundo.
Instabilidade climática já anuncia desastres ambientais no Pantanal
Outro fator determinante para a preservação do bioma é a análise das mudanças climáticas, que, nos últimos, têm impactado fortemente a região. Segundo o diretor da Ecoa, os eventos extremos registrados na região, intensificados pela influência do super El Niño e o aquecimento das águas do Pacifico Equatorial, tem gerado longos períodos de seca no Pantanal.
“Em Forte Coimbra, a jusante da cidade de Corumbá, o nível está negativo – a medida da Marinha do Brasil marca hoje, 21 de novembro, -0,74 centímetros, o que definitivamente não permite a navegação”, explica Alcides.
Em 2023, os incêndios, que mais uma vez consomem o Pantanal, podem representar um novo desastre ambiental para o bioma que sofreu ao ser consumido pelas chamas em 2020. Naquele ano, 26% do território do Pantanal foi destruído pelo fogo.
Neste ano, segundo ambientalistas, a nova onda de incêndios teve início a partir de raios registrados na região do Paiaguás, no norte do Pantanal, na região do Mato Grosso. As chamas se alastraram para Mato Grosso do Sul e o bioma tem cerca de 1 quilômetro de extensão consumido por incêndio a cada hora.
Para o ambientalista, se os eventos climáticos extremos já representam um risco para os ecossistemas pantaneiros e alterações profundas na dinâmica da vida, grandes intervenções como as propostas de dragagens, retiradas de rochas e retilinização podem decretar o fim de todo o bioma.
“Os cientistas estão corretos, a construção da hidrovia pode sim, acelerar o fim do Pantanal”, enfatiza.
Pressão social mudou os rumos do projeto
Nos anos 90, diversos estudos apontavam que o tramo norte, onde está o Pantanal, seria a região mais impactada com drenagem de extensas regiões, o que resultaria na perda de biodiversidade e alteração na dinâmica ecológica de todo o sistema. Em meio a pressão de ambientalistas e rejeição do projeto por parte da sociedade, a estratégia muda e o projeto passa por alterações.
“No momento, via PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), o que é proposto são grandes dragagens em uma área fundamental para a economia e a vida no Pantanal: o trecho norte, passando pelo Parque Nacional do Pantanal e a Reserva Ecológica Tayamã”, explica.
Em 2002, a Justiça brasileira determinou um novo estudo de impacto ambiental para que a operação da hidrovia fosse liberada. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) também teve de reanalisar todo o projeto.
No mês de agosto deste ano, o ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, declarou que o Governo Federal vai apresentar um projeto de expansão da hidrovia até 2026. Sem detalhar o projeto, o ministro afirmou que a operação da hidrovia no Brasil é uma das prioridades da agenda internacional do presidente Lula (PT).
Alcides Faria ressalta que a Ecoa segue acompanhando o andamento do projeto, a fim de evitar um novo desastre ambiental no Pantanal.
“Nossas preocupações ambientais/ecológicas têm conexões com os impactos econômicos e sociais. Áreas que a organização monitora de perto por possíveis efeitos sobre a pesca em suas várias modalidades, por exemplo, a atividade que mais gera trabalho e renda no Pantanal”, destaca.
Promessa de ‘progresso’ abre caminhos para destruição
Com extensão total de 165.840 km, com porções no Brasil de 151.939 km (91,6%), Bolívia 10.924 km (6,6%) e Paraguai 2.980 km (1,8%), o Pantanal é a maior área úmida contínua de água doce na Terra.
Em julho deste ano, a ONG Ecoa (Ecologia em Ação), sediada em Mato Grosso do Sul, alertou que as diversas obras que prometem trazer ‘progresso e desenvolvimento’, como a abertura de estradas em rodovias da região, podem, na verdade, estar acelerando a destruição do Pantanal.
Além dos impactos ambientais diretos, as obras vão na contramão da preservação ambiental, uma vez que estimulam a chegada de novas empresas, que, segundo a entidade, estariam mais interessadas em maximizar seus lucros do que preservar a biodiversidade e a cultura pantaneira.
Dados do Relatório Anual do Desmatamento do MapBiomas indicam que o Pantanal registrou a maior taxa de desmatamento do quadriênio em 2022. Em todo o período (2019-2022), foram 101 mil hectares desmatados, o que equivale a quase o tamanho da cidade do Rio de Janeiro (RJ).
Segundo a ONG, a falta de legislações específicas para proteger o bioma, acelera o desmatamento e a hidrovia Paraná-Paraguai é uma sentença de morte para o Pantanal.
“Na navegação dos comboios de barcaças, o megaprojeto exige obras pesadas. Seria necessário explodir rochas, acabar com as curvas dos rios e aprofundar o leito do rio Paraguai”, destaca.
Alternativas ‘sustentáveis’ à hidrovia
Entre os que defendem o projeto, o principal argumento é que a hidrovia traria maior progresso a todo Estado de Mato Grosso do Sul, possibilitando acordos comerciais e fomento da economia, mas seria a hidrovia a única solução? Para evitar a extinção do bioma, os cientistas defendem o uso de meios alternativos para o transporte das commodities produzido em cada país, como as ferrovias.
O ambientalista explica que, em primeiro lugar, deve-se considerar as condições dadas pelo rio Paraguai antes da navegação. “Hoje se utiliza o rio para o transporte de minérios, por exemplo, naqueles anos que se tem água para atender ao calado mínimo exigido para tanto”, afirma.
Segundo os ambientalistas, a partir do extremo Sul do Pantanal, em Porto Murtinho , as condições do rio atendem a dinâmicas distintas.
Quanto ao transporte de grãos, combustíveis e químicos para a agricultura, de grande parte dos estados de Mato Grosso, Goiás e Mato Grosso do Sul, Alcides ressalta que a alternativa mais ‘sustentável’ seriam as ferrovias, a exemplo está a Ferronorte.
“A ferrovia que percorre a parte alta da bacia do Pantanal, conhecida como Ferronorte, via sob concessão para a Rumo S.A. A empresa desenvolve projeto para que os trilhos avancem no estado de Mato Grosso para o Norte, até Lucas do Rio Verde. Recentemente tracei uma comparação entre ela e a hidrovia. Minha análise resultou totalmente favorável a Ferronorte”, explica.
Ibama afirma que preservação será prioridade
O processo do licenciamento ambiental para a construção da hidrovia é conduzido pela coordenação de licenciamento ambiental de hidrelétricas, obras e estruturas fluviais da diretoria de licenciamento do Ibama.
Superintendente do Meio Ambiente em Mato Grosso do Sul, Joanice Lube Battilani, destaca que a preservação do bioma será uma prioridade do Ibama, por isso, foi elaborada uma minuta de Resolução no Conama por meio da Secretaria Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais e Desenvolvimento Rural Sustentável.
“Essa minuta foi criada com objetivo de elaborar estratégias de ações coordenadas pelo MMA (Ministério do Meio Ambiente). A Resolução do Conama tem por objetivos definir áreas de restrição de uso para aproveitamento hidrelétrico na BAP e tratar das navegações de grande porte no tramo norte do Rio Paraguai de Cáceres à Corumbá “, explica.
Joanice Lube Battilani ressalta que o MMA baseia-se nos estudos apresentados pela sociedade civil, academia e organizações não governamentais